Livros bons em conteúdo e bons em suporte material são raros nos meios libertários e anarquistas. Há muita tradução sofrível, muito livro mal acabado, e muita coisa ruim passando como boa. Não é este o caso. Esta nova edição deste clássico maior do pensamento anarquista está primorosa em todos os aspectos.
Eu já conhecia o livro há muitos anos. Tenho dele a rara tradução pela editora Simões (no original impresso, não em PDF) e havia lido a edição original francesa de 1892 e a segunda edição británica de 1913 (esses sim, em PDF).
A qualidade desta nova tradução é simplesmente impressionante: o texto flui tão bem quanto no original, cuja mais marcante característica é a oralidade, escrever como quem fala, escrever para dialogar com o simples trabalhador manual a quem os artigos originais que compõem o livro se dirigiam.
A qualidade do trabalho editorial é igualmente impressionante. Excelente desenho de capa, boas e precisas notas editoriais; uma riquíssima apresentação da obra, de seu contexto, de seu impacto, e das traduções ao português que a precederam; a tradução do prefácio da edição britânica, e dos prefácios de Elisee Reclus e Rudolf Rocker; a escolha das fontes para miolo e capa, e seu tamanho adequado; o uso adequado da mancha gráfica; juro, juro mesmo, que fiquei emocionado com a dedicação da equipe editorial à obra. Toda minha ligação quase emocional com essa obra aflorou como talvez somente quando terminei sua leitura pela primeira vez, há mais de vinte anos.
O conteúdo é indiscutivelmente primoroso. Kropotkin, aliás, deveria ser estudado não somente por anarquistas, socialistas e comunistas, mas por qualquer pessoa interessada em jornalismo popular. Nos artigos que formam "A Conquista do Pão", originalmente publicados em jornais operários, Kropotkin não quer fazer grandes teorias, grandes sistemas teóricos, tal como fez em "Apoio mútuo: um fator de evolução"; quer, ao contrário, pegar problemas do dia a dia e examiná-los sob a luz do anarquismo. Alimentos; habitação; vestuário; salários; divisão social do trabalho; agricultura; indústria; até mesmo um esboço de projeto utópico, que Kropotkin estenderia mais tarde em "Campos, fábricas e oficinas" (que a Biblioteca Terra Livre promete publicar em breve em nova tradução), está tudo ali, tudo em palavras simples, em exemplos do dia a dia, em retórica escorreita e argumentação paciente.
(Este constante método de enraizamento nos fatos do dia a dia exigiria muito mais notas editoriais para que se possa situar adequadamente o leitor menos versado em História, que é onde hoje está o presente daquele tempo; mas, ora, isso é questão de gosto minha, que não afeta em nada a qualidade da edição.)
Saúdo a republicação primorosa de um clássico do anarquismo, cuja leitura nunca me canso de recomendar.